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O "S" DE NÃO

Alguém duvida que a gente diga "não" respondendo que "sim"? Acredite. Isso é mais frequente e mais sutil do que a gente possa imaginar. É uma questão cultural: o maior empecilho para a gente pronunciar aquela palavra negativa, que custa a sair dos lábios, é o nosso problema em ferir os ouvidos e as suscetibilidades alheias. A gente acha que "não" ofende: estamos errados. O "não" esclarece, o "sim" aumenta a hipocrisia.
E não basta uma aulinha de língua, de uso dos advérbios, de coerência de texto: a cultura se aninha e cresce com a gente. Destruir um hábito, ou um vício, é uma batalha quixotesca.
Em vez de dizer não, a gente prefere prometer e descumprir. Melhor dar uma desculpa de última hora do que acabar com a expectativa no nascedouro.
Em vez de usar o não, a gente opta por mentir.
Isso é tão comum, que, quando as pessoas dizem algo, sempre há um interlocutor pronto para perguntar: "o que você quer dizer com isso?", como se fosse óbvio que estamos dizendo outra coisa.
Entre nós, não por acaso, abundam as entrelinhas, os mal-entendidos, as interpretações equivocadas. O diálogo sofre, porque não somos bons nas artes interpretativas. A gente se resigna à adivinhação. E erra à beça.
Para evitar maiores problemas, o melhor seria aceitar a realidade como ela é, ou seja, admitir que com frequência dizemos uma coisa e estamos pensando em outra. Depois disso, é preciso analisar bem o contexto e avaliar o maior número de hipóteses possível, pois o que nos leva ao erro de interpretação é a ilusão de que o contrário de um "não" é um "sim". Engano: para o que "não é" a contrapartida é o infinito. A habilidade de uma boa interpretação não está em buscar aquilo que não foi dito ou o que está nas entrelinhas, mas em limar e excluir hipóteses descartáveis, deixando à disposição dos sentidos tudo o que pode ser.
Na realidade, se treinássemos mais as nossas capacidades interpretativas, poderíamos curtir muito mais a complexidade humana. Se deixássemos o campo dos possíveis significados em aberto, poderíamos colher nuances que ignoramos por não fazerem parte do nosso repertório pessoal. Por isso, sugiro fazer o contrário: diante de uma dúvida a respeito do que uma pessoa está querendo dizer, elimino apenas o que sei que ela não está querendo dizer. Deixo ao tempo esclarecer se, entre as inúmeras possibilidades, o sentido se revela entre as hipóteses mais prováveis ou se ele irá me surpreender. Ou ainda: se o sentido irá mudar, surpreendendo até o próprio autor. Isso acontece muito na literatura, quando escritores escrevem sobre temas que, à medida que o tempo passa, adquirem novos significados, que não podiam ser imaginados no momento da criação.
Obviamente, para aprender a interpretar não basta um curso nem uma vida. Seria picaretagem afirmar que a gente pode fazer um curso de língua ou de literatura e vai aprender. Mas essas disciplinas ajudam muito. Precisam ser cultivadas cotidianamente e devem ser acompanhadas pelo hábito que podemos desenvolver: aquele de colocar em dúvida se entendi bem o que o interlocutor está querendo dizer. Portanto, são ações que associam a teoria à prática. Cada vez que você estiver certo de ter entendido bem uma situação, tire do bolso a sua capacidade de se questionar. Procure, ao menos, imaginar uma interpretação plausível e diferente da sua. Treine. As possibilidades de evitar quiproquós aumentam
com o tempo. E a qualidade das suas relações melhora.

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