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POR OUTRO LADO, CUIDADO

Levante a mão quem não aprendeu que uma boa dissertação escolar precisa apresentar os argumentos e contra-argumentos em dois parágrafos separados? É verdade. Ensina-se assim. Apresenta-se a questão que "por um lado" é assim e "por outro lado", assado. Tudo bem, mas cuidado com o "por outro lado". Quando estamos apresentando o outro lado da questão, que muitas vezes não coincide com o que pensamos, acreditamos, defendemos e consideramos correto, corremos um risco bastante alto de fazer uma média, em vez de apresentar realmente o outro lado. Corremos o risco de relativizar a nossa própria posição, a fim de dar espaço à posição do outro. Corremos o risco de assumir uma posição que não é nossa e de parecer que, afinal de contas, não temos nenhuma posição, apenas precisamos preencher trinta linhas seguindo o modelito do manual.
Uma boa dissertação é bem diferente disso. Não requer uma posição equidistante, assética, indolor.
Façamos um exemplo: devo falar sobre o racismo, um crime inafiançável. Então, como irei apresentar os argumentos dos racistas sem me misturar com o racismo deles? Posso usar a descrição: "os racistas baseiam-se em teorias que já foram desmentidas há muito por pesquisas históricas e sociais. Somente graças a esse subterfúgio, continuam a defender o indefensável, ou seja, a supremacia de certas raças e o próprio conceito de raça, questionado amplamente em várias esferas das ciências". Pronto: disse o que "por outro lado" pensam os outros, deixando claro que essa triste realidade existe, mas deve ser denunciada pelas suas falácias.
Aprender a escrever uma boa redação é uma oportunidade para treinar o nosso modo de posicionar-se no mundo. É fundamental.
Esses dias, numa conversa entre físicos (gente que eu adoro, porque são super racionais), uma pessoa levantou essa tal questão fundamental em um debate no qual todos eram concordes, mas muita gente fora do discurso científico não é, de que vacinar é preciso. Enquanto a maioria recordava todos os resultados científicos e estatísticos, que deveriam ser suficientes para demonstrar as boas razões para vacinar as crianças, uma física disse: acho que precisamos verificar onde estamos errando ao ensinar a lógica.
De fato, se as pessoas continuam fazendo argumentações ilógicas, deve haver um problema nisso. No modo como organizamos o pensamento. Trata-se de um problema comum, que enfrentamos cotidianamente em qualquer bate-papo. E nessa batalha, travada entre as fileiras do conhecimento fundamentado, organizado, coerentemente apresentado e as do senso comum, a banalização tem levado a melhor.
Por isso, ao treinar a redação do clássico terceiro parágrafo, iniciando com "por outro lado", cuidado. Esse é o momento em que deve prevalecer a lógica, em que se descreve a posição do outro para desmontar o seu argumento e reforçar a posição que se defende. Trata-se do ponto mais alto ou do escorregão maior; da vitória da argumentação fundamentada, escrita com coerência, ou da relativização total.
Treinar essa habilidade comporta outras consequências: reduz o recurso que fazemos às crenças, às dúvidas, aos insultos, à raiva, ao deboche, enfim, a todo tipo de solução que não sendo lógica é apelativa e quer convencer ou rebater sem demonstrar. Então, por outro lado, cuidado.

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