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Mostrando postagens de 2016

PARA NÃO DIZER QUE NÃO FALEI DE MEMES

1. É sempre Grande Sertão: Veredas , um dos meus romances preferidos, que volta à memória quando penso no uso da linguagem. Como se o Brasil, passado, presente e futuro, estivesse inteiramente ali, esperando apenas o seu cumprimento. O romance fala de tudo, como se sabe, fala de tudo e de dúvidas, porque a dúvida confere a grande humanidade, frágil, precária, que agiganta a personagem. Em um certo momento, Zé Bebelo chama Riobaldo para animar os jagunços. Riobaldo diz que não é nada, nada, nada mesmo, nadinha de nada, nada... coisinha nenhuma, o nada coisinha mesma nenhuma de nada, o menorzinho de todos. De nada. De nada... De nada... Ao ouvir a autodescrição de Riobaldo, Zé Bebelo reage com desconfiança "perturbada", mostra inquietação. Então ri, de modo generoso, e diz ao seu jagunço: "Tu vale o melhor. Tu é o meu homem!..."  Guimarães Rosa não é apenas um grande narrador, é um profundo conhecedor da linguagem: nesse romance, feito de guerra, morte,

Químicos aprovam nomes dos novos elementos da tabela periódica

Assinalamos uma notícia que anuncia os nomes dos novos elementos químicos da tabela periódica e indica as regras seguidas pela União Internacional de Química Pura e Aplicada para estabelecer as novas denominações. As novas palavras aceitas pela instituição são classificadas como "epônimos". O epônimo é um nome próprio usado para designar outro nome. Em português, usamos genericamente este termo, mas eu prefiro chamar os neologismos formados a partir dos nomes próprios de "deônimos", para marcar que se trata de palavras derivadas. Apenas outra observação, não bem esclarecida no artigo: "Nihon" não é uma simples palavra de origem japonesa (de fato, apenas isso não a caracterizaria como deônimo), mas "Nihon" é o modo mais comum de pronunciar "Japão" em língua japonesa. Isso abre uma outra questão interessante: o fato de muitos países possuírem um nome em língua local e outro ligado ao contexto histórico. Isso ocorre, por exemplo, com

Aula de culinária para entender a gramática

Os italianos adoram comer. E adoram cozinhar. A mesma paixão que revelam quando se dividem entre times rivais, eles revelam quando se trata de defender a receita original e a mais original de um prato! A mesma paixão que revelam ao defender a sua seleção, mostram ao unirem-se contra qualquer tentativa de internacionalizar seus pratos, desfigurando a cor local. O professor Massimo Montanari, da Universidade de Bolonha, escreve sobre o sentido de originalidade em um artigo do livro "Il Pregiudizio Universale" (um jogo de palavras com a expressão "juízo universal"; mas o título deve ser traduzido como "o preconceito universal", "pregiudizio" é um falso cognato). No caso, a noção de receita original parte de um típico prato da cozinha do Lácio, a massa à carbonara. O autor explica que há inúmeras receitas na rede e que o uso de alguns ingredientes chega a causar inimizades. É o amor pela cozinha e pela tradição. Quando uma receita é assinada por um

Um silêncio aberrante

O silêncio é aquele espaço entre uma letra e outra, entre uma sílaba e outra, entre uma palavra e outra, entre uma frase e outra, entre um parágrafo e outro, entre um texto e outro, entre uma vida e outra, na qual nós, leitores de textos, do tempo e da vida, inserimos a nossa interpretação - também essa silenciosa. Os silêncios se falam, mas ninguém sabe se eles se entendem. Só podemos testar o nível de compreensão quando abrimos o texto ao diálogo, quando com generosidade e sem temor nos abrimos ao que o leitor possa pensar daquilo que leu. Só podemos fazer isso, depois que as páginas são esfolheadas e percorridas pelo olhar atento, correndo o risco de acolher suspiros, queixas, espantos, repulsa, paixão, obsessões, ideias fixas ou opiniões vazias. Mas esses silêncios são sempre instigantes, mesmo que não se traduzam, mesmo que nunca saibamos o que querem dizer. Há somente um silêncio assustador, desumano, niilista, que nos ameaça constantemente: o silêncio do escritor. O silêncio d

Nutella? É guerra!

O Made in Italy nunca para de sofrer. A Itália é conhecida no mundo pelas iguarias e pelos produtos da indústria alimentar, feitos segundo receitas rigorosas com matérias-primas locais. Quer dizer: são inimitáveis. Mas o mundo copia, e no mundo inteiro encontramos o parmesão, que é não só uma tradução do "parmigiano", mas uma cópia mal feita do queijo original. Muçarela? Sim, em português escrevemos com "ç" para deixar registrado que se trata de um estrangeirismo, mas a verdadeira "mozzarella" tem que ser feita com o leite de búfala de Caserta, de Salerno ou do Sul do Lácio (a chamada "mozzarella pontina"). A última batalha gastronômico-linguística está sendo feita contra o termo Nutella. A Academia Nacional do Irã decretou que o nome deve ser banido do país e traduzido em persa. Mas convém explicar melhor nos detalhes: no Irã, as panquecarias são chamadas de NutellaBar, porque fazem especialmente panquecas recheadas com creme de chocolate e

AB IMO CORDE

Gosto muito de etimologia, não somente por amor à história, mas também pelas relações que as palavras estabelecem entre si. É um vício, porque uma palavra puxa outra, história puxa história e a gente vai se redescobrindo no labirinto da língua. Hoje quero falar da família da palavra "coração", por isso usei o título em latim, que significa exatamanete isso: "do fundo do coração". Vamos, então, recuperar alguns sentidos lá do fundo do baú? Que tal começar com MISERICÓRDIA? A palavra possui a raiz miseri-, que também está presente na palavra "miséria", e que significa suscitar piedade. A isso se soma o elemento -CORDIA, do latim "cor, cordis", ou seja, "coração". Sentir misericórdia é ter piedade com o coração. Para os latinos, o coração era o centro das qualidades humanas. Por isso, a CORAGEM também vem do coração. A CONCÓRDIA e a DISCÓRDIA são a harmonia ou a desarmonia mediadas pelo coração, por meio das emoções. O ACORDE também vem

NEOLOGISMOS EM TEMPO DE CRISE

Se alguém retornasse hoje ao Brasil, após uma ausência de 10 anos, ficaria perplexo e desorientado com os termos que empregamos no cotidiano: coxinha, petralha, isentão... o que é isso? É a vitalidade da língua, sinalizando um momento crítico, significativo na nossa história e na nossa sociedade. O termo "coxinha" designa um salgadinho típico da nossa culinária, mas hoje se torna metáfora. Talvez possamos dizer que é um cidadão típico, médio, ou médio-alto, e que atualmente se coloca entre os que levantam críticas explícitas ao governo. A palavra "petralha", salvo engano meu, é um trocadilho com "metralha", personagens da Disney, aqueles ladrões fofos que viviam tentando roubar o Tio Patinhas. Aqui a alusão é referida aos casos de corrupção que estão sendo investigados na Operação Lava Jato. Os "petralhas" são os defensores do governo sob investigação. "Isentão" é o último neologismo do momento. Diante da polarização entre "coxi

NÃO HÁ VIDA FORA DA CALIGRAFIA

A frase do título encerra um conto magistral de Moacyr Scliar, O Sindicato dos Calígrafos, escrito em 1978. Era a época de ouro da datilografia, e ninguém sonhava que o visor tátil iria aposentar até os teclados que substituíram com prepotência a máquina de escrever. Todo o conto é um hino à melancolia que não desiste de ter esperança, porque não tem nenhuma esperança, porque não tem outra solução. Um dos personagens, o Epaminondas, faz uma reflexão sobre a sua vida e considera que teria sido oportuno ter tido o nome Luís - com "l" minúsculo, numa ascendente que atinge o ponto culminante para descer em um vertiginoso crepúsculo. É uma das imagens mais amargas do texto, na qual o sujeito se defronta com uma realidade inexorável: a da sua vida perfeitamente espelhada na sua atividade profissional. Uma vida que perde o sentido à medida que a profissão perde utilidade. É nesse contexto que se sobressai a frase: "A permanência da arte caligráfica, diz Alcebíades, um dos fund

PORTESTE: Teste os seus conhecimentos

Gostaria de informar que criei um pequeno aplicativo para testar conhecimentos da língua portuguesa. O link para baixar gratuitamente o aplicativo é este aqui: https://play.google.com/store/apps/details?id=com.wPORTESTE&hl=it Este é o ícone para identificar o aplicativo. Bom divertimento e deixem os comentários de vocês. Obrigada!

A revolução francesa contra o circunflexo

Banido. Adieu, caro circunflexo. Pois é, é a França entrando na onda da reforma ortográfica. Dizem que para além dos Pirineus a briga entre defensores do circunflexo e os seus opositores está tão aguerrida quanto a batalha pelo nosso acordo ortográfico. A novidade é esta: o uso do circunflexo não será mais obrigatório na língua francesa. Mais ou menos como acontece no Brasil, onde muitas pessoas escrevem mal, mas os temas ligados ao português desencadeiam ódios e inimizades, da mesma forma, na França, a língua é tema sério, defendido pelo Estado, um patrimônio nacional. E as mudanças no idioma devem passar pelo diário oficial, como o nosso acordo ortográfico. Aqui uma das charges sobre o tema Novamente, o que está por trás da polêmica é o valor da língua como patrimônio cultural e como vetor de comunicação. Os que acusam a reforma dizem que a simplificação dá aval à superficialidade. Os defensores afirmam que a discussão sobre a complexidade da língua francesa, que cria dificu

Uber e os novos sofistas

"Os empresários da indústria automobilística indenizaram, por acaso, os donos de carroças puxadas a cavalo?" Esta não é uma frase dita casualmente, mas é o tipo de afirmação que requer do interlocutor prontidão de sentidos para ativar a memória e elaborar uma resposta à altura da malandragem. Empresários como o autor da frase acima, que é fundador do Uber, não são apenas raposas nos negócios, também são águias na língua. A eficácia na comunicação é essencial para destruir um adversário no campo do comércio. Não por acaso, a "diplomacia" da indústria é chamada de departamento de comunicação externa e institucional. A guerra à concorrência se ganha na lábia (e no lobby). Sim, os cocheiros não foram indenizados. Na época da invenção do automóvel não havia grandes sindicatos, os cocheiros eram "profissionais autônomos", não tínhamos passado pela II Guerra Mundial e nenhum governo europeu tinha descoberto ainda que o estado de bem-esta

A PÁTRIA, A MÃE E A LÍNGUA

                                                               "Amo-te, ó rude e doloroso idioma,                    Em que da voz materna ouvi: 'meu filho!'" Não é novidade o meu apreço pelo poema "Língua Portuguesa", de Olavo Bilac, do qual cito os dois versos acima.  O poema inteiro é uma declaração de amor pelo português. Assim como amorosa e radical é a definição de Fernando Pessoa, por meio do heterônimo Bernardo Soares: "Não tenho sentimento nenhum politico ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriotico. Minha patria é a lingua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incommodassem pessoalmente, Mas odeio, com odio verdadeiro, com o unico odio que sinto, não quem escreve mal portuguez, não quem não sabe syntaxe, não quem escreve em orthographia simplificada, mas a pagina mal escripta, como pessoa própria, a syntaxe errada, como gente em que se bata, a orthographia sem ípsi

VOCÊ FALA PORTUGUÊS? ENTÃO AS LÍNGUAS INDÍGENAS SÃO UM PROBLEMA SEU

Confesso: o meu primeiro "estou estarrecida" de 2016 vai para a Pátria Educadora. Cito o veto da nossa Presidenta em relação ao projeto de lei que daria um lugar ao sol para as línguas indígenas no nosso mapa linguístico: “Apesar do mérito da proposta, o dispositivo incluiria, por um lado, obrigação demasiadamente ampla e de difícil implementação por conta da grande variedade de comunidades e línguas indígenas no Brasil. Por outro lado, a obrigação de se ministrar o ensino profissionalizante e superior apenas na língua portuguesa inviabilizaria a oferta de cursos em língua estrangeira, importante para a inserção do País no ambiente internacional. Por fim, a aplicação de avaliação de larga escala poderia ser prejudicada caso se tornasse obrigatória a inclusão de todas as particularidades das inúmeras comunidades indígenas do território nacional.” Presidência da República Federativa do Brasil, Mensagem nº 600, de 29 de dezembro de 2015. Eis os artigos vetados: "A e