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Mostrando postagens de 2015

Olha só...

Esta semana, a Nutella, um dos produtos italianos mais conhecidos no mundo, está lançando uma campanha de venda na Itália com expressões dialetais impressas no rótulo. Na imagem, vemos uma expressão usada no dialeto romanesco, usado em Roma, que significa "olha só...", indicando surpresa. Não é uma novidade esse tipo de "personalização" (ou "customização" - palavra introduzida no português a partir do inglês, e que possui muitos significados interessantes merecedores de um artigo específico). A Coca-cola também realizou uma campanha planetária, atraindo o consumidor à caça do seu nome, do nome de amigos ou de frases que exprimissem o espírito do momento em que se bebe o refrigerante. Em termos de uso da língua, o que há por trás dessas propostas? Há a percepção de que a empatia pode ser traduzida em termos linguísticos e pode ser usada com fins persuasivos. Esse tipo de estratégia vai além do objetivo de aumentar as vendas em geral, ela quer atingir

TCHAU PARA VOCÊS!

"Seu escravo, vossa mercê!" Quem diria que ao usar a expressão coloquial "tchau pra vocês!" estamos atualizando uma expressão que encerra tanta reverência, não é? Pois pasmem, é isso mesmo. Vamos à história. A palavra "tchau" vem do italiano, mas especificamente do dialeto vêneto ("sciao"). Não é de admirar-se, visto que temos tantos descendentes de vênetos no Brasil. Mas antes de vir do vêneto, o "sciao" (transliterado como "tchau") vem do latim "sclavus" (escravo). É um termo que pertencia à expressão: "seu escravo". Também no português, usar essa expressão era o máximo da reverência: "José, seu escravo!". Lindo quando se trata de uma declaração de amor, abominável quando significa total submissão. Já a palavra "vocês" tem uma história toda lusófona: trata-se de uma típica evolução caracterizada pela economia fonética, ou seja, pela simplificação ou concisão na pronúncia (o que de

REBOBINAR - EM VIA DE EXTINÇÃO

Fora da esfera técnica, ninguém mais usa o verbo rebobinar. Antigamente era costume: rebobinava-se o filme da máquina fotográfica para não perder as imagens na hora de mandar fazer a revelação. Rebobinava-se a fita de vídeo para não pagar multa na locadora. Rebobinava-se a fita cassete (com caneta Bic) para não perder tempo, enquanto se escutava a próxima fita no aparelho de som. Ninguém mais rebobina. A gente clica, deleta, carrega, baixa, aperta o botão, escolhe o tipo de reprodução. Rebobinar dava aos sentidos da visão e da audição uma dimensão tátil mais intensa que a de hoje. Ou pelo menos mais circular.

IR: MODOS DE USAR

Fazia tempo que eu não falava dos verbos. É que eles são tão arraigados ao uso que fazemos da língua, que explicitar é quase uma violação da intimidade que temos com as palavras, com o nosso modo de conviver com o idioma. Obviamente, não pretendo com isso dar a entender que não é preciso estudar os verbos. É preciso estudá-los e é um direito tomar posse deles, torná-los nossos, usá-los com toda a propriedade de que dispõem. Usar bem os verbos é como apropriar-se plenamente de uma herança. Não falo tanto dos verbos porque a escola faz isso todos os dias, como um jardineiro paciente, como um precetor cuidadoso. Eu falo dos verbos como um pintor de aquerela sentado na praça: com paixão pelo tempo que corre, pela água que escorre, pelas cores que desbotam indiferentes à beleza do absoluto. Eu falo dos verbos que fazem caretas para os falantes, reinventam-se, vivem porque renascem todos os dias nas nossas línguas. O verbo IR, por exemplo, hoje bateu à porta da minha memória sem ser cha

SABORES DO ORIENTE

De onde vêm as frutas que comemos? Muitas vezes vêm de longe, e nem sempre pensamos nisso: na distância, no tempo, no que significam (quando é possível descobrir). Pêssego - vem do latim persicu(m) (malum), ou seja, maçã da Pérsia. Na realidade, o pêssego vem da China, mas desde a Antiguidade era conhecida na área mediterrânea, onde era associada ao cultivo na Pérsia. Ameixa - vem do latim (pruna) (d)amascea, ou seja (pruna) damascena, de Damasco. De "amascea" [amaxea > ameixa], evoluiu alterando a posição do ditongo. Interessante, não? Em italiano, só por curiosidade, prevaleceu o termo "pruna", que na língua de Dante escreve-se "prugna". Bergamota - vem da expressão turca "beg armudi", ou seja, "pera do príncipe". Laranja - origina-se do termo persa "narang", provável derivação do sânscrito "nagaranja", que significa "gosto dos elefantes". Curiosamente, em italiano, uma das formas de nomear uma

CARA DE QUÊ?

"Aí, cara, como vai?" "Cara" nem sempre é o feminino de "caro" e sinônimo de "querido". "Cara" pode ser um nome genérico para indicar "pessoa", "amigo", "fulano". E, com muita frequência, "cara" é masculino. "Cara, você, sim, que é meu amigo!" "Você é o cara!" "Vi um cara estranho na rua." O Aurélio explica que "cara" vem do grego "kara", "cabeça". Os latinos usavam "caput" para indicar a extremidade do corpo: portanto, é claro que esse termo também deu origem a várias palavras em português. Vamos ver como evoluiu o nosso léxico, a partir de "caput" e "kara"? Palavras originadas de "caput" Cabeça - para entender como passamos de "caput" a "cabeça", primeiramente é preciso lembrar que as consoantes "p" e "b" alternam-se com frequência, porque são

A CULPA É DA LÍNGUA

Leio frequentemente desabafos de quem vê horrores ortográficos e associa às dificuldades linguísticas os sintomas de intrínsecas dificuldades profissionais: "se não sabe nem escrever, imagina que tipo de profissional pode ser", coisas assim. Isso porque é por meio da língua que comunicamos as nossas competências: e se não comunicamos bem, parece que não sabemos bem. Não é por acaso que a língua tem um peso considerável em concursos, independentemente da área para a qual o candidato propõe-se. Realmente, a língua é fundamental. Mas não é uma simples alavanca profissional, não é um simples meio. A língua é o nosso canal de contato com o mundo exterior: através da língua afirmamos quem somos (inclusive com nossos erros e limitações) e onde estamos na sociedade. O nosso sotaque individual é único, chama-se idioleto: o timbre, a cadência, a entoação, o ritmo que caracterizam a nossa voz são inconfundíveis. O estilo que usamos na escrita nos caracteriza, torna-se uma marca pessoa

DIALOGUISMO E OUTROS BERGOGLIANISMOS QUE ENRIQUECEM AS LÍNGUAS

O último neologismo do Papa Francisco tem data de nascimento: 20 de Maio de 2015. Falando sobre a relação entre pais e filhos, o Papa disse que um dialoguismo superficial não comporta um verdadeiro encontro da mente e do coração. Mas na síntese em português, o "dialoguismo" foi traduzido de forma parafrástica, explicativa: "é preciso não se contentar com um diálogo superficial". "Dialoguismo superficial" não é "diálogo superficial", mas parece evidente que os tradutores, ao contrário do Papa, não se sentem à vontade para ousar na linguagem. Com "dialoguismo" é provável que Francisco tenha procurado evidenciar o diálogo sistematicamente ineficaz, que se torna um falar vazio, que não cumpre a sua função. Importante: não confunda o neologismo bergogliano "dialoguismo" com o termo usado por Bakhtin, estudioso russo que cunhou o termo "dialogismo", retomado nas teorias pós-estruturalistas a partir da crítica francesa.

POR QUE OS ESCRITORES DEVEM SER CONTRA A REFORMA ORTOGRÁFICA?

A gente pode concordar ou discordar do acordo, o importante é que os escritores têm que estar contra! Por quê? Porque escritor não tem compromisso com a gramática. Tem compromisso com a língua. A língua portuguesa durante muitos séculos sobreviveu sem nenhuma gramática normativa, e a gramática sobreviveu até o fim do século XIX sem nenhuma regra sobre uso de hífens. Mas as línguas vivem e se enriquecem graças aos seus falantes... e aos seus escritores. A diferença é que os comuns mortais falantes estão sujeitos às agruras dos decretos, os escritores têm o dever de não se submeterem a uma norma única. ESCRITOR NÃO TEM COMPROMISSO COM A GRAMÁTICA Não peça para um escritor obedecer às regras da gramática normativa. A representação literária do mundo exige a utilização de vários registros linguísticos. Ao utilizar apenas o padrão culto, o escritor estará falhando com o princípio de verossimilhança. O texto ficará artificial, perderá a sua literariedade. Será um texto banal, que em nad

CINCO MANEIRAS GARANTIDAS DE ARRUINAR UM TEXTO LITERÁRIO

Recentemente falei das utilidades da literatura. Hoje gostaria de compartilhar com os leitores cinco modos eficazes para destruir um texto literário (embora seja um fato geralmente indesejado, especialmente se o agente da destruição for um professor). LEIA O TEXTO EM VOZ ALTA A poesia tem uma regra: ela precisa ser recitada. Não é possível fruir plenamente a sua poeticidade sem a dimensão material gerada pela vibração das ondas sonoras no espaço. Eu gosto de chamar a atenção para isso, porque a literatura, quando recitada, interage com materiais plásticos (ou seja, deformáveis), especialmente o ar, mas não só. Interage com os tímpanos. Assim como a pintura modifica-se de acordo com a frequência de luz que incide sobre o quadro e com a nossa capacidade de visão. Dá para perceber que ler mal um texto é um crime! Em vez de harmonias, a leitura em voz alta pode gerar dissonâncias e criar um efeito indesejado. Portanto, todo cuidado é pouco, pois os nossos sentidos estão ligados às emoç

ADEREÇOS, BIBELÔS E BADULAQUES

Frase feita: "uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa". Coisa boba, não é? Mas a frase é eficaz, porque a repetição da palavra "coisa" inevitavelmente "fere os ouvidos", e ferindo chama a atenção, e chamando a atenção favorece a memorização. Agora imagine que a pessoa não esteja usando uma sentença com esse tipo de estrutura para criar uma tirada ou fazer uma ironia. Digamos que ela queira chamar a sua atenção: "não confunda alhos com bugalhos!" Aqui também é a fonética a fazer o papel de elemento catalizador da atenção, criando assonância. Efeito garantido. Vejamos outros exemplos: "Quem com ferro fere, com ferro será ferido". Usa a repetição e a assonância para reforçar o conceito que as palavras exprimem. Ou ainda: "Quem pode, pode; quem não pode se sacode". Aqui temos novamente a repetição e a assonância. Mas convenhamos: a mensagem é péssima, embora seja tão hipnótica, que acabamos fixando na memória, m

OURO, INCENSO, MIRRA... E MORTADELA!

Há palavras que vivem aventuras incríveis: quando a etimologia não dá conta do recado, entram em jogo as lendas, que, se não explicam, inspiram. Uma dessas palavras é mirra. Como sugere o título, a mirra está no famoso episódio dos Reis Magos, tendo sido presenteada por suas propriedades aromáticas (mas também como alusão à paixão que seria vivida por Cristo nas horas derradeiras). De fato, a mirra é um ingrediente usado na perfumaria, mas também por suas propriedades medicinais, especialmente anti-sépticas. Sob forma de incenso, também era utilizada durante funerais e na cremação, por sua aromaticidade. Além disso, desde o Egito antigo, conhecem-se as propriedades da mirra úteis no processo de embalsamação.  Daí o termo "mirrado", emagrecido, ressequido, comparável à mumificação. Ainda na Antiguidade, uma outra planta é denominada "mirrina" por exalar um perfume que lembra a mirra: trata-se da murta, cujas frutas silvestres são utilizadas de várias formas: em doc

DEZ UTILIDADES DA LITERATURA

A gente lê muito pouco, não é? Quem não tem um caso em família, na escola, entre os amigos. Então, pensando nisso, achei que seria bom compartilhar com vocês dez utilidades da literatura, as mais evidentes, para usar em caso de necessidade. 1) Serve para passar o tempo. Você está lá numa festinha chata, em que as pessoas só falam de TV e de internet e não sabe o que fazer? Fale do último livro que você leu. As pessoas vão ficar surpreendidas e provavelmente você passará a ser visto como um ser muito inteligente. Efeito colateral: você pode ficar sem ter com quem falar, mas aí já sabe o que está perdendo. Sempre dá para falar de TV e internet, mas enjoa. 2) Serve para treinar o seu conhecimento da língua . Você está lá, lendo um romance cheio de gírias e descobre, por exemplo, que há gírias que já entraram no uso corrente da língua. Se você gosta de gírias, pode sempre usar um livro como seu advogado. Obviamente, há livros sem nenhuma gíria, com palavras estranhíssimas, em desuso. Ó

ESCORREGÕES

"A cantora Mara Maravilha foi alvo de críticas nas redes sociais nesta quinta-feira (20). A baiana compartilhou uma foto onde aparece ao lado do apresentador Nelson Rubens e, ao legendar a publicação, ela escorregou no português. "Nelson Rubens...Ele é fofoqueiro...ele só almenta (sic), mas não inventa, kkk", escreveu. Não demorou muito e Mara passou a ser hostilizada no Instagram. "Putz, em que escola vc estudou hein?", questionou uma. "ALmenta essa inteligência também", alfinetou outra. "Tem que voltar pra escola....vergonha", comentou a terceira internauta." (Correio, 27/02/2015) "Claudia Raia homenageou, nesta sexta-feira (10), o amigo, Miguel Falabella, pelo seu aniversário. Em legenda de foto fofa, porém, ela cometeu um erro de português e não escapou da patrulha dos seguidores. — O meu mais amado amigo, irmão, parceiro profissional, hj é seu dia, que São Miguel te cubra de boas energias , saude e dissernimento! Te amo se

O HÍFEN DA DISCÓRDIA

Nada é capaz de criar mais polêmica entre os gramáticos, nem de criar maior constrangimento entre os especialistas. O hífen divide, apaixona, põe à prova. Boa parte da briga em torno do Novo Acordo Ortográfico está relacionado ao seu uso ou à sua supressão. E os estudantes, em tudo isso? Ah, os estudantes continuam boiando, como sempre estiveram. Podem decorar e entender o motivo do uso ou da não utilização de um hífen com um radical grego ou latino, mas o problema das palavras compostas continua inalterado: a resposta, em muitos casos, não está ilustrada nas gramáticas, não aparece nos dicionários, pois a língua é rebelde, não obedece a decretos e regras preestabelecidas, e continua a tirar do forno palavras novas, formadas pela conjugação de palavras existentes ou mesmo de neologismos para formar sentidos novos, que representam as experiências que o mundo continuamente nos oferece. Mas quando começa toda essa polêmica? Desde quando usamos o hífen em português? A professora Antônia V

A SÍLABA, COITADA

Há elementos da gramática que parecem destinados ao papel da vilão. A sílaba é um deles: não há concurso que se preze que não coloque uma questãozinha sobre uma exceção na divisão silábica. Ah, porque para um belestrista, para os pedantes de plantão, a regra geral da divisão silábica não importa, o que vale é a humilhação de desmascarar os candidatos e fazê-los morrer na praia por causa das exceções. Não bastasse isso, a tecnologia absorveu completamente a necessidade do revisor na diagramação do texto. A silabação é automática e as "viúvas" (as linhas quebradas isoladas no início de uma página) podem ser eliminadas com um ou dois truques de qualquer editor de texto. A sílaba vive dias difíceis, de indiferença e de ódio. Estudar para quê? Como para quê? Para elevar o espírito, ora bolas! Para apropriar-se das palavras e do vocabulário da língua saboreando cada pedacinho, como se fosse um tablete de chocolate finíssimo. A sílaba faz música na poesia, impõe o ritmo. Os po

A OBSESSÃO DOS OBJETIVOS

O texto de hoje deveria falar sobre uma das obsessões das chamadas "boas escolas": o cumprimento do programa. Porém, ao refletir um pouco mais, percebi que essa obsessão é só a primeira de outras obsessões análogas, ou talvez seja a fase propedêutica de uma obsessão que nos acompanha no trabalho, nas relações sociais, que espelha o nosso modo de estar no mundo. Na escola, o programa parece ter um papel central. Então, os alunos não são levados a exprimir os seus talentos, a explorar a sua criatividade, a fazer descobertas espontâneas (que são o verdadeiro motor das revoluções científicas, embora seja validíssima e importante a pesquisa cotidiana com método e rigor). Os alunos são levados a cumprir o programa. E quanto mais capaz de se adaptar ao programa, mais o aluno é considerado exemplar. Um exemplo mundial desse tipo de padronização que as recentes gerações estão sofrendo? O exame PISA, aplicado em vários países, inclusive no Brasil. Eu não sou contra o PISA, seria boba