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Mostrando postagens de março, 2011

ODE À IGNORANÇA

Esta é uma declaração de amor a Alberto Caeiro, o primeiro; e a Manoel de Barros, o último. Porque os amores são assim: restam aqueles que inauguram o curso de um rio e aqueles que Vinicius definiria serem os únicos que ficam. Faz anos: fui à livraria comprar o então último livro de Barros. ― Queria o “Livro das Ignoranças”. A vendedora corrigiu-me: ― Não é ignorança, é ig-no-RÂN-CIA. Claro, ela conhecia muito bem a matéria dos produtos que vendia: não se pode trabalhar em uma livraria e não ter certa cultura. Digamos, porém, que o meu amor dava-me asas para correr à livraria mais próxima de casa (nem a maior, nem a mais abastecida), chegando antes que a moça pudesse ver os últimos lançamentos e constatar que nada havia de estranho no meu pedido. A “ignorança” de Manoel de Barros é a ignorância no momento em que ainda ignora si mesma. É ignorância em estado puro. Ela me carrega para Alberto Caeiro, como se eu fosse Dona Flor. É inevitável. Caeiro dizia: “a única inocência é não pensar”

FAMA E SUCESSO

Quer fama e sucesso? Ótimo. Saiba então o que lhe espera. Para começar, são termos bem sedimentados na língua, o primeiro faz estreia no século XIII (quer dizer, nos primórdios), o segundo, no século XVI, derivando ambos do latim. Em outras palavras, não me admira que os jovens desejem fama e sucesso, esses velhos conhecidos, vocábulos que acompanharam descobridores, heróis, aventureiros, náufragos, piratas, capitães-do-mato, ladrões, pregadores e ateus confessos. Por vezes usados com certa superficialidade em sentido positivo, como se isso fosse óbvio, convém lembrar que as coisas não estão bem assim: ainda hoje se goza de boa e má fama, tem-se bom e mau sucesso. Na maioria das vezes, porém, temos boa e má fama ao mesmo tempo, bom e mau sucesso simultaneamente. Aquilo que nos acontece, os nossos sucessos, são positivos ou negativos, de acordo com a perspectiva de quem observa. Isso não quer dizer que sou relativista, que para mim as coisas se equival

SILÊNCIO

Um dos temas mais fascinantes na comunicação é o silêncio. Nessa área temos grandes mestres, mas tenho a sensação de que o assunto passa meio de longe pelos programas escolares e a realidade dá margem a certos estereótipos que distorcem o seu alcance e os seus efeitos. O grande teórico do silêncio foi para mim Wolfgang Iser. O não-dito, as lacunas, os espaços encontrados em um texto eram para ele a esfera em que o leitor deveria ter um papel ativo para dar sentido a uma obra literária. É claro que numa comunicação entre dois interlocutores o papel dos atores é muito diferente, pois não se tem tempo para avaliar as pausas, as hesitações, as reformulações sem que isso implique necessariamente uma perda de foco na conversa. Contudo, concentrar-se excessivamente no que é dito é o erro perfeito de quem tem por lema “me engana que eu gosto”: especialmente se o interlocutor for hábil em retórica. Há outros mestres nessa arte que muito me ensinaram: Machado de Assis, Clarice Lispector, Gabriel

VOCÊ NÃO MANDA EM MIM

Posso pedir um favorzinho? Agora nós vamos fazer uma tarefa. Podem começar. É preciso. Deve ser feita. A etiqueta manda e a língua não se faz de rogada. Aí estão uns poucos exemplos da arte de mandar, dispensando o clássico imperativo. Aliás, o comando eficaz deve evitá-lo: reserve uma boa ordem explícita para as instruções, aquelas de manual (que pouca gente lê) – e não deixe de notar que acabo de usar o imperativo, caso decida ficar por aqui. ... ... ... Não encarnei a Clarice Lispector. Não estou inovando nada, estou apenas utilizando os sinais que a pontuação nos oferece para caracterizar uma outra forma de domínio: aquela que se efetua sem que uma palavra seja dita. Exemplo prático. A secretária pede ao chefe: – Posso sair mais cedo? Resposta: – ... Na vida real se diz: “se faz de surdo”... Cruel? Nem tanto. Aí vai uma melhor. A secretária pede ao chefe: – Posso sair mais cedo? Resposta: – O que a senhora achou do desfile de carnaval? Na vida real

BELETRISMO OU A TEORIA DO TITIO

Beletrismo: a face oposta dos insultos. Se insultar é um modo verbal de resolver conflitos que correm o risco de acabar em pancadaria, o beletrismo é um instrumento de poder que dispensa a força física. Quase sempre as demonstrações típicas do pior beletrismo são vazias: descontextualizadas, pedantes, mas com a força de um arpão que fisga a presa no momento de distração. Sou grata à sinceridade de um tio meu por ter retirado o véu de falsa beleza dessas performances que põem no chão as almas ingênuas. Ele explicava que, para manter a sua autoridade de chefe competente, costumava reforçar a fama de homem de grande memória e vasta cultura, usando as reuniões de setor para as suas encenações. Depois de levantar os pontos a serem discutidos, elencando erros, equívocos e atos imperdoáveis, ilustrava a questão e recorria a uma citação com fonte completa, inclusive o número da página. A sua tese é que a citação tinha um ótimo efeito, mas lembrar até o número

APOLOGIA AO PALAVRÃO

Fique claro: a minha alma refinada engole de mau grado grosserias, palavras de baixo calão, vulgaridades, obscenidades, insultos em geral e o que mais possa ser colocado sob o guarda-chuva de “palavrão”. Observe-se também que “palavrão” é um daqueles eufemismos típicos do português: de fato, quando queremos rebaixar alguém de forma sutil (mas nem tanto), usamos o aumentativo: bobalhão, bestalhão, paspalhão, valentão, etc. Trata-se de palavras que passam sem grandes dificuldades pelo crivo dos ouvidos mais delicados. Agora a apologia: o interesse sobre o assunto deriva de uma demanda real, das perguntas diretas que os estudantes fazem sobre o tema, com uma ponta de curiosidade e talvez de prazer em levantar questões constrangedoras e deixar os professores em maus lençóis. Eu não me faço de rogada e enfrento com classe para deixar bem claro que não é qualquer palavra que me assusta. Ao buscar uma resposta bem fundamentada, encontrei um texto do professor Cláudio Moreno, docente da Unive